Ashita no Joe: o herói da classe trabalhadora que impactou o Japão

Lucas Coimbra
18 min readJun 2, 2021

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Rocky, longa-metragem de 1976 que ganhou o Oscar de Melhor Filme e estabeleceu Sylvester Stallone como um astro de Hollywood, talvez seja a mais famosa história de um underdog, ou azarão. Esse tipo de trajetória, em que o mais fraco ou pobre se impõe para vencer na vida, ou se tornar campeão, funciona muito bem narrativamente. É algo que engaja o espectador e o faz torcer pelo protagonista.

Um exemplo recente disso pode ser observado pela repercussão mundial da inesperada conquista da Premier League pelo Leicester City, na temporada 2015–2016. Num clássico conto de fadas protagonizado por um underdog, a relativamente pequena equipe de futebol do interior da Inglaterra surpreendeu a todos ao deixar para trás os times mais endinheirados da Europa para sagrar-se campeã.

Percebe-se que os personagens que contrariam as possibilidades limitadas pelas desigualdades sociais inerentes ao capitalismo — um sistema de cartas marcadas e vencedores pré-determinados — têm um potencial enorme de cativar as pessoas, que muitas vezes se identificam com os “perdedores”. Em outras palavras, é simplesmente muito mais divertido torcer pelo lado mais fraco da disputa.

O que muitas pessoas talvez não saibam, é que uma história semelhante a de Rocky começou a ser escrita nos anos 60, do outro lado do mundo. Ashita no Joe — em tradução literal, Joe do Amanhã — é um mangá que foi publicado na icônica revista japonesa Weekly Shonen Jump, de 1968 a 1973, escrito por Ikki Kajiwara e ilustrado por Tetsuya Chiba, e teve 20 milhões de cópias vendidas.

O mangá narra a vida de Joe, um pobre órfão que se revela um talento selvagem das lutas de Boxe, e sua trajetória de ex-presidiário juvenil até as lutas oficiais pelo título continental e mundial. Mas por que uma história cuja sinopse soa comum nos dias de hoje é tão importante e influente, principalmente no seu país de origem?

O contexto socioeconômico e político

Em 1968, ano de lançamento de Ashita no Joe, o Japão se beneficiava do rápido crescimento econômico do mundo pós-guerra, e a economia do país já havia se tornado a segunda maior do mundo, depois dos Estados Unidos. A industrialização acelerada causou grandes transformações nos meios de produção e na paisagem urbana nipônica, enquanto o ocidente começava a influenciar mais e mais a cultura japonesa. A partir desse cenário, diversos problemas sociais se desencadearam no país.

Ao mesmo tempo, ecoavam pelo mundo os ares de revoluções populares e culturais como uma resposta da sociedade às guerras e às desigualdades sociais. Nos Estados Unidos, os protestos contra a guerra do Vietnã somavam-se à luta dos direitos civis e à rebelião estudantil. Na China, havia uma revolução cultural em curso, e na França, o movimento de Maio de 68.

Protesto no Japão em comemoração ao Dia Internacional Anti-Guerra (21/10/1968). Foto: Hitomi Watanabe

Por sua vez, no Japão não era diferente. Para se ter uma ideia, em Outubro de 1968, aproximadamente 290 mil pessoas foram para as ruas protestar contra a guerra do Vietnã. O ato tomou rumos violentos e terminou em confronto com a polícia. Crescia também no país o movimento estudantil, que era fortemente marcado por uma ideologia anti-imperialista.

Apesar da reconstrução do Japão estar surtindo grande efeito, ainda havia uma grande parte da população que constituía a classe trabalhadora, que se esforçava em meio às adversidades para não ser deixada para trás nessa guinada econômica do país.

Nesse cenário, o cinema era uma mídia de entretenimento massiva de enorme potencial, mas que também demandava um grande investimento de tempo e dinheiro para sua produção e distribuição. Dessa forma, os mangás acabavam por ser um meio de comunicação mais barato e rápido, com capacidade de chegar a mais pessoas. O fato das narrativas serem serializadas — no formato de um capítulo por semana que se mantém até hoje — também era algo que contribuía para fidelização do leitor e impulsionou a popularidade dos mangás.

Vale ressaltar que o boxe também era um esporte de crescente popularidade no Japão, uma vez que o país conseguiu se destacar ao conquistar medalhas olímpicas nas categorias de peso mais leve.

Ashita no Joe e seu protagonista nasceram então dentro desse contexto, representando o cidadão japonês que passava por dificuldades e trabalhava duro para superá-las. Nas páginas da Weekly Shonen Jump, a classe trabalhadora japonesa teve, pela primeira vez, a oportunidade de se identificar e torcer por um dos seus: um jovem pobre e sem perspectivas, que vivia na área periférica e trabalhava duro para realizar seu sonho. Para isso, ele contava apenas com seu talento, sua perseverança e uma forte personalidade.

As influências políticas do mangá

O personagem Joe passou a ser não apenas um herói do povo, mas também um símbolo político para a chamada Nova Esquerda que surgia no japão, formada majoritariamente por universitários. Nessa época, os estudantes japoneses protestavam contra as universidades privadas a quais acusavam de preparar mão de obra para servir aos monopólios, além de serem excessivamente caras.

É nesse cenário que surge o Exército Vermelho Japonês, um grupo comunista formado por universitários em meados de 1969. Cansados dos partidos políticos, que se mostravam incapazes de solucionar os problemas do povo, da apatia das pessoas (30% dos eleitores não iam às urnas quando tinham que eleger representantes) e das discussões teóricas que não chegam a lugar nenhum, o Exército Vermelho decidiu realizar ações radicais.

Em 1970, nove membros desse grupo sequestraram um avião em voo doméstico no Japão e o desviaram para a Coréia do Norte. Todos os passageiros foram liberados do avião, que pousou na Coréia do Sul antes de chegar ao seu destino final. O líder desse grupo expressou na declaração de responsabilidade pelo ato: “Não se enganem. Nós somos o Joe do Amanhã (Ashita no Joe)”.

A maioria dos membros do Exército Vermelho Japonês envolvidos no incidente já morreu, mas quatro deles permanecem na Coréia do Norte, aonde foram recebidos como hérois. Entre eles, Moriaki Wakabayashi, o baixista original da Les Rallizes Dénudés, uma das primeiras e mais revolucionárias bandas de rock psicodélico do Japão.

No entanto, pode-se dizer que Ashita no Joe foi além e se tornou algo próximo de uma unanimidade no país, agradando a gregos e troianos, ou esquerda e direita. Yukio Mishima, famoso escritor, ator e militante de direita, também era leitor assíduo do mangá.

Tornou-se notório o fato de que, certo dia, Mishima apareceu tarde da noite no escritório da Weekly Shonen Jump, implorando para comprar a revista. Ele havia passado o dia inteiro ocupado, gravando o filme Black Lizard (Kurotokage, 1968), e por isso não conseguiu passar em uma banca de jornal. Mesmo assim, Mishima precisava da sua dose semanal de Ashita no Joe, e não podia sequer esperar até a manhã seguinte. O escritório da editora Kodansha não realizava vendas e sequer possuía um caixa, mas ofereceu como cortesia o exemplar da revista para o escritor.

Apenas dois anos depois do lançamento do filme que Yukio Mishima gravava à época de tal incidente, o escritor engajou-se na ação política que resultou em sua morte. Em 1970, Mishima invadiu uma base militar no centro de Tóquio junto a outros quatro membros da Tatenokai (Sociedade da Armadura) — milícia criada pelo próprio escritor, dedicada aos valores culturais tradicionais japoneses e à veneração ao Imperador.

Após deter breve controle sobre a base militar, Yukio Mishima declarou um discurso numa tentativa de inspirar as forças armadas a se erguerem e derrubarem a constituição japonesa de 1947, a qual ele se referia como “a constituição da derrota”. Em seguida, gritou “Vida longa ao imperador!” e cometeu suicídio, realizando o ritual do seppuku.

Aparentemente, assim como Joe, alguns leitores do mangá levavam a vida a sério e seguiam com suas convicções até as últimas consequências. Mas o que havia na obra e nos seus personagens que era capaz de comover e mobilizar tantas pessoas?

Joe Yabuki, o seu amigo da vizinhança

Diferente dos mangás de temática fantástica que faziam sucesso até então, como o clássico de Osamu Tezuka, Astro Boy, Ashita no Joe era construído em cima de uma temática realista. Ainda que funcionasse perfeitamente como entretenimento, ele contava com esse forte aspecto da identificação do povo para com o seu herói. Comparando levianamente com os quadrinhos norte-americanos, Joe está para o Homem-Aranha como o Astro Boy está para o Super Homem.

No início da história, somos apresentados a Joe Yabuki, um garoto sem teto que vaga pelo distrito de Sanya, área periférica de Tóquio, conhecida então como um de seus mais pobres bairros.

Era justamente em Sanya que moravam as pessoas responsáveis por construir o Japão moderno, ao longo das décadas do pós-guerra: A Torre de Tóquio, as instalações para os Jogos Olímpicos de Verão de 1964 e a via expressa metropolitana. Ou seja, a infraestrutura que estabeleceu as bases da megalópole que conhecemos hoje.

A presença de Ashita no Joe no Japão contemporâneo: um homem anda pelas ruas de Sanya. Ao fundo, a imagem do personagem Danpei, treinador de Joe no mangá. Foto: Frédéric Soltan/Corbis via Getty Images

É nesse local (real) que o protagonista do mangá encontra o ex-boxeador alcoólatra Danpei Tange, que reconhece o talento do jovem e começa a treiná-lo. Danpei almeja usar seus conhecimentos e sua experiência de boxe para fazer daquele pobre desconhecido o maior boxeador do Japão.

Apesar da sinopse simples, Joe é um personagem complexo. Atormentado por demônios interiores (além dos exteriores), a sua principal virtude é nunca desistir. Esse aspecto de sua personalidade talvez seja o mais marcante, e é por conta dele que o protagonista não se permite nunca descansar, relaxar, ou sequer manter relações normais com outras pessoas. Joe chega ao extremo de abdicar de sua saúde, segurança e felicidade para seguir lutando.

Quando o personagem enfrenta fortes oponentes no ringue, é constantemente surrado, levando mais socos do que qualquer ser humano normal aguentaria. Trata-se de uma cena recorrente em Ashita no Joe: sob suor, sangue e os gritos de seu treinador, o boxeador se levanta lentamente, e com um sorriso no rosto, diz: “Ainda não acabou!”.

Diferentes dos outros protagonista da época, Joe não era um herói perfeito, repleto de virtudes. Pelo contrário, ele era um ser humano como outro qualquer, cheio de falhas. Por conta do meio em que cresceu, ele se tornou um marginal violento e egoísta, que despreza a lei. Ele representa muitas vezes um lado ruim dos seres humanos, e é justamente isso que abre margem para o seu amadurecimento e o possibilita se tornar uma pessoa melhor.

Um dos momentos mais marcantes e profundos da série se dá quando Joe é questionado sobre seu estilo de vida por um de seus interesses românticos. É uma das poucas cenas em que vemos o protagonista desabafando sobre seus sentimentos de maneira serena — uma passagem que se mostra chave não só para o desenvolvimento do personagem, mas para a temática da obra. Nela, Joe diz que, em nome do seu amor pelo boxe, deseja lutar até que seu corpo entre em combustão e vire apenas “cinzas brancas”.

A filosofia de vida das “cinzas brancas” de Yabuki inspirou muitos japoneses, em contextos diversos. O surgimento e a popularidade do mangá eram produtos do seu próprio tempo. Portanto, a força de vontade e a fixação pelo futuro personificadas em seu protagonista iam de encontro à atitude e à ética de trabalho do povo japonês durante o crescimento econômico de seu país. As dificuldades existiam, mas a crença é de que podiam ser vencidas através do trabalho duro. Pode-se dizer que, dessa forma, Ashita no Joe capturou o zeitgeist do Japão.

Como dizia Joe, a ideia era dedicar-se de corpo e alma, manifestando no trabalho o seu amor pelo ofício — queimar até que sobrem apenas cinzas brancas. “Nem mesmo brasas pequenas. Só cinzas brancas.”

Lutas de shonen, atmosfera neorrealista

Joe treina pelas ruas pobres de Sanya.

Por mais que Ashita no Joe seja lembrado por seus personagens marcantes, seus treinamentos e lutas memoráveis, características do mangá shonen, há outro fator que se destaca na obra: a importância narrativa e visual dada para os cenários nos quais a história se desenvolve.

A primeira coisa que chamou minha atenção na arte de Ashita no Joe é o trabalho que o ilustrador Tetsuya Chiba deposita nas imagens da cidade. As cenas em plano aberto são recorrentes, nas quais os personagens são vistos pequenos em relação à Tóquio. Isso faz com que o leitor perceba a insignificância das vidas retratadas em meio à cidade grande. Trata-se de uma opção estética que tira um pouco do foco dos personagens para mostrá-los em perspectiva à megalópole que se desenvolve no período pós-guerra.

O improvisado clube de boxe Tange. Ao fundo, as chaminés das fábricas.
Área da cidade voltado para o entretenimento, próxima ao estádio. Primórdios do distrito de Kabukicho?

Esse recurso também serve para ressaltar as diferenças sociais de Tóquio. Ao ilustrar as diferentes áreas da cidade, se torna possível identificar os detalhes da arquitetura e das pessoas que ali habitam. Frequentemente, tais detalhes revelam as características e a classe social de determinada região.

O semblante abatido de Joe, em contraste com uma área mais rica de Tóquio.
Quadros do mangá Ashita no Joe que exibem os detalhes realistas da arquitetura de Tóquio no fim dos anos 60.

Todo esse cuidado na representação detalhada de Tóquio nos anos 60 é fundamental na criação de uma atmosfera para a história. A ambientação do mangá remete aos filmes de vanguarda europeus, como os do movimento neorrealista italiano. Os filmes de diretores como Vittorio De Sica e Roberto Rosselini representam a realidade social e econômica da Itália no período pós-guerra e causaram grande impacto na história do cinema. Neles, a arquitetura urbana e as diferenças sociais também são presenças marcantes.

“Roma, Cidade Aberta”, de Roberto Rossellini (1945)
“Milagre em Milão”, de Vittorio De Sica (1951)

Além dessa representação visual, em Ashita no Joe há também o foco nas desigualdades sociais como temática e cerne de conflitos narrativos. Existem diversos exemplos disso ao longo dos vinte volumes do mangá, mas seleciono aqui um momento específico, que ocorre logo no início da história escrita por Ikki Kajiwara.

Joe está sem dinheiro e procura em Sanya um lugar para passar a noite, mas é rejeitado em todas as pensões nas quais pede abrigo. Sem entender o porquê das rejeições, começa a ficar irritado. Logo, Danpei aparece e lhe explica o motivo: o casaco novo de Joe.

Fica assim estabelecido, logo no início do mangá, o universo habitado por aqueles personagens. Na periferia de Ashita no Joe, um simples casaco pode atuar como marcador de distinção social.

O mesmo recurso é utilizado no clássico hollywoodiano Sindicato de Ladrões, de 1951. O filme de Elia Kazan conta a história de Terry (Marlon Brando), um ex-boxeador fracassado, que agora é visto como um vagabundo no bairro em que vive e se envolve com a máfia.

Em uma das primeiras cenas de Sindicato de Ladrões, Terry encontra os mafiosos na entrada de um bar. Nesse momento, um detalhe visual é utilizado para distinguir o protagonista dos seus chefes. Terry usa uma jaqueta simples de estampa xadrez, enquanto os membros da máfia vestem casacos de qualidade, em cores sóbrias. A jaqueta xadrez não apenas separa o personagem interpretado por Marlon Brando dos mafiosos de classe alta, como o identifica como membro da classe trabalhadora.

A jaqueta diferente do personagem como marcador social em Sindicato de Ladrões, de 1951.

O cuidado na escolha do figurino fica ainda mais evidente na sequência da cena, quando Terry entra no bar para encontrar o chefe da máfia. No decorrer da ação, o protagonista do filme tira sua jaqueta antes de falar com o chefe, numa indicação de que a sua posição social é motivo de vergonha naquele momento.

É interessante notar que, em Sindicato de Ladrões, Elia Kazan parece ter sido diretamente influenciado pelo neorrealismo italiano. Além da temática marcada pelas desigualdades sociais e sofrimento da classe trabalhadora, o diretor também filmou em locações reais e usou atores não profissionais como personagens menores e figurantes. A história do filme inclusive reflete fatos reais que aconteciam na zona portuária da cidade de Nova York, que envolviam crimes de corrupção e extorsão. As principais vítimas eram justamente os trabalhadores do sindicato dos estivadores, que são retratados no longa-metragem de Elia Kazan.

Dessa forma, percebe-se como Ashita no Joe pertence ao universo das obras artísticas que retratam a época do pós-guerra. Não há como ter certeza se de fato ocorreu uma influência direta do neorrealismo italiano ou dos filmes hollywoodianos na criação do mangá. No entanto, existem diversas evidências e características que apontam Ashita no Joe não só como uma obra fundamental para a linguagem moderna dos mangás, mas também como uma importante representação de época do Japão.

Popularidade e influência que chegam até os dias de hoje

Seguindo o sucesso do mangá, a primeira parte da obra foi adaptada para uma versão animada em 1970, com a continuação sendo produzida em 1980. O animê foi considerado uma obra-prima do gênero e definiu muito do repertório visual que é utilizado no meio até os dias de hoje. A produção também serviu para ampliar a popularidade da história de Joe, que atingiu níveis inéditos no Japão.

A mais famosa curiosidade referente ao sucesso da obra se deu quando o poeta e ícone da contracultura, Shuji Terayama, organizou um funeral de verdade para um dos personagens, Tooru Rikiishi, um mês após sua morte fictícia. Cerca de 700 fãs lotaram o auditório da sede da editora Kodansha, localizada na cidade de Tóquio, em plena terça-feira à tarde, para se despedir do rival de Joe. Entre eles, estavam desde estudantes do ensino médio até trabalhadores de escritório, os dois autores do mangá e Fighting Harada, ex-campeão mundial de boxe nas categorias peso galo e peso mosca.

O funeral de Tooru Rikiishi, realizado em 24 de Março de 1970 na cidade de Tóquio.

As pessoas compareceram vestidas de preto e a cerimônia foi realizada na presença de um monge. Incensos foram acesos e sutras comuns de funerais japoneses foram recitados. Havia uma foto do personagem e até um ringue verdadeiro foi trazido da arena de boxe Korakuen Hall.

Com tamanha popularidade, o impacto que Ashita no Joe causou na indústria dos animês pode ser percebida até os dias de hoje, tendo influenciado diversos mangakás, roteiristas, diretores e animadores. As chances dos criadores do seu animê favorito serem fãs de Ashita no Joe são grandes, e isso é fácil de provar.

Naruto, por exemplo, é uma das animações japonesas que até hoje mais faz sucesso no Brasil. O episódio 133, um dos mais marcantes da série clássica, foi dirigido pelo experiente animador Atsushi Wakabayashi, que admitiu a influência de Ashita no Joe. Segundo ele, os membros de sua equipe também eram fãs da obra clássica, e por conta disso trabalharam para que o embate entre os rivais Naruto e Sasuke transbordasse drama, assim como acontece na rivalidade entre Joe Yabuki e Tooru Rikiishi.

“Apelo de um Amigo!”, episódio 133 de Naruto (2005).

Wakabayashi disse em uma entrevista que as características de Uzumaki Naruto o aproximavam do arquétipo clássico do personagem o qual ele cresceu torcendo, Joe Yabuki. A intenção que o diretor teve nesse episódio específico foi de marcar o final da luta entre os rivais como um momento icônico e catártico, impulsionado pelas emoções do protagonista.

Além de introduzir e popularizar o arquétipo do protagonista dos mangás shonen, Ashita no Joe também estabeleceu marcas visuais que são replicadas até hoje. O melhor exemplo talvez seja a mais famosa técnica de boxe utilizada por Joe, o cross counter. Nesse caso, é melhor mostrar do que explicar:

Joe x Rikiishi: o cross counter no anime de Ashita no Joe, e sua referência em Tengen Toppa Gurren-Lagann (2007), do estúdio GAINAX.
Cross counter em Legend of the Galactic Heroes (1997).
Dragon Ball Z (1994) e Dragon Ball Super (2016).

Esse movimento é replicado em diversos outros animês famosos, como Death Note, Pokémon e Cavaleiros do Zodíaco. Inclusive, o primeiro grande sucesso de Masami Kurumada, antes de criar os seus cavaleiros, foi um mangá de boxe — Ring ni Kakero. O autor já declarou que Ashita no Joe foi a obra que o inspirou a se tornar um mangaká.

Em 2018, o estúdio de animação TMS (o mesmo responsável pela segunda parte do anime original) produziu Megalo Box, em comemoração ao 50° aniversário de Ashita no Joe. O animê, que está disponível na Netflix, é uma espécie de releitura do mangá clássico ambientada em um cenário futurista, e funciona tanto para fãs da história clássica quanto para novos espectadores. A primeira temporada foi bem recebida por público e crítica, e a segunda estreou em Abril de 2021.

Megalo Box (2018) e Ashita no Joe

Outro animê da TMS que prestou homenagens a Ashita no Joe em 2018 foi Lupin III: Parte 5. Lupin III é outra franquia clássica e popular no Japão, e suas temporadas mais recentes estão disponíveis para o público brasileiro na Prime Video.

Referências a Ashita no Joe em Lupin III: Parte 5.

As referências e homenagens que existem a Ashita no Joe são tantas, que seria impossível reunir todas aqui. A influência da obra parece se estender ad infinitum. Não é à toa que existe uma página brasileira no Facebook chamada “Toda semana uma referência a Ashita no Joe”, cujo título é autoexplicativo.

Em 2020, o site norte-americano Vulture, da revista New York Magazine, publicou um artigo escrito com opiniões de especialistas e profissionais da indústria sobre as 100 sequências de animações mais influentes da história. A lista, organizada em ordem cronológica, abrange produções que vão desde o curta-metragem francês Pauvre Pierrot, de 1892, até Steven Universe, de 2019.

Ashita no Joe entrou na seleção do site pela técnica de desenho conhecida como “memórias de cartão-postal”, utilizada pelo diretor Osamu Dezaki. A técnica é descrita no artigo como sua grande contribuição para a história da animação, e consiste numa forma estilizada de planos de desfecho, caracterizada por um frame congelado e pintado em giz pastel, o que lembra uma foto antiga desbotada. Daí vem o nome da técnica, “memórias de cartão-postal”. Ela é utilizada para enfatizar uma ação ou focar na emoção da cena e nos sentimentos dos personagens.

Algumas das “memórias de cartão-postal” em Ashita no Joe 2 (1980–1981)

Em Ashita no Joe 2, Dezaki usou essa técnica de animação em diversos momentos marcantes, mas talvez seu mais famoso uso se dê na icônica cena final do animê, exibida em 1981. Desde então, a sua aplicação em obras do gênero se tornou recorrente, o que fez dela uma das mais reconhecíveis técnicas visuais da animação japonesa. As “memórias de cartão-postal” podem ser vistas em diversas produções famosas, de Dragon Ball Z a Kill la Kill, entre muitas outras.

Diante de todos esses fatos, é curioso que o mangá nunca tenha chegado oficialmente ao Brasil. Para ler a história completa de Joe, é preciso recorrer às edições escaneadas e disponíveis na internet, que contam com versões em inglês e já traduzidas para o português. Apenas a segunda parte da versão animada, Ashita no Joe 2, de 1980, chegou a constar no catálogo do Crunchyroll, serviço de streaming voltado para animês. No entanto, atualmente a série não está mais disponível para o Brasil.

Por todos os elementos citados e elaborados neste artigo, é seguro dizer que Ashita no Joe resistiu ao teste do tempo e conseguiu se manter relevante até os dias de hoje. Seja pela importância histórica da obra, como registro de seu tempo e influência popular. Seja por seus aspectos estéticos e narrativos, que estabeleceram paradigmas do seu meio de comunicação e diálogos com outros, como o cinema. Ou seja pelo impacto causado, forte o suficiente para atravessar gerações e fazer com que animês de sucesso, mais de cinquenta anos depois, bebam da sua fonte — fazendo questão de referenciar, homenagear e enaltecer.

Talvez Ashita no Joe se mantenha relevante e cativante até hoje principalmente pelas características do seu protagonista. É ele, Joe, quem mais funciona como um espelho para os seus leitores. Sua determinação, carisma e ousadia. Mas também sua agressividade, seu egoísmo e teimosia. Seus exageros. Pode-se dizer que a masculinidade tóxica, um assunto muito em discussão atualmente, é um fator predominante na obra. Talvez toda a agressividade do personagem não seja fruto apenas das dificuldades do meio em que foi criado, mas também do que ele entendia ser um “verdadeiro homem”. E talvez, seguindo essa linha de pensamento, o seu destino esteja atrelado à sua própria percepção de gênero. Esta seria apenas mais uma das leituras possíveis de Ashita no Joe, a qual pediria um outro artigo para ampliar a reflexão.

Joe Yabuki está longe de ser o herói perfeito, e talvez seja por isso que o impacto de sua história chegue para as mais diferentes pessoas, nos mais diversos contextos. Além de ser um personagem que marcou época, a análise da obra a qual ele protagoniza acrescenta muito ao argumento da relevância artística e do impacto popular dos mangás.

Por tudo isso, Joe será lembrado para sempre.

Uma versão expandida deste artigo foi publicada posteriormente no site JBox (Parte 1 e Parte 2), e na Jacobin Brasil.

Texto escrito por Lucas Rocha Coimbra, redator, roteirista e pesquisador, Mestre em Comunicação Social pela PUC-Rio.

Contato: coimbra.lucas@gmail.com / Twitter: @lucasrcoimbra

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